Caminhos pelo Xingu: o que aprendi com o povo Juruna sobre liderança

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É no campo do sutil que as pessoas se conectam e a liderança acontece como uma dança

Um rio como guia, muitas perguntas na bagagem e um roteiro desenhado pelos desconfortos do desconhecido. Com o desejo d’alma de curar a desconexão com as raízes ancestrais desta terra que habito, cheguei em Altamira, no Pará.

Durante uma semana, teria como desafio me despir da minha forma de viver e mergulhar no modo de vida dos povos locais. A expedição, organizada pelo Instituto Socioambiental (ISA) em conjunto com o povo Juruna (Yudjá), da Volta Grande do Xingu, contava ainda com biólogos, antropólogos, pesquisadores, ativistas ambientais, jornalistas e membros do Ministério Público Federal.

O objetivo do projeto era proporcionar uma interação direta com os impactos e conflitos causados nas comunidades ribeirinhas e indígenas em razão da construção da hidrelétrica de Belo Monte. Naquele momento, sem dimensionar o real significado e profundidade dessa missão, segui para esta aventura tomada por um entusiasmo juvenil e uma humilde postura de estudante. 

Os caminhos que nos levam ao Xingu

A primeira parada da incursão foi em uma igreja aos arredores de Altamira, símbolo da militância ecológica e indígena na região amazônica desde os tempos da ditadura militar. Ali pudemos nos conhecer, nos familiarizar com a logística da travessia e com a complexidade e diversidade social, cultural e econômica na qual iríamos imergir. 

Antes de sermos apresentados às canoas e aos remos que nos levariam a percorrer 107 km Xingu adentro, fomos agraciados com a fala do Cacique Giliarde Juruna. Envolta em uma atmosfera de honra à natureza e aos povos indígenas, que lutam para sobreviver ao contínuo e permanente massacre colonizante e imperialista que os ameaça e extingue há mais de cinco séculos, tive o meu primeiro contato com um universo que, até então, só chegava até mim por meio de notícias de jornal.

Em poucos minutos, o ambiente foi tomado pela emoção. As lágrimas desciam como um gesto de reverência. Não pela beleza e eloquência da retórica, que sem dúvidas estavam presentes nas declarações do cacique, mas pela verdade e potência daquelas palavras que saíam do coração e eram reverberadas pelas ondas sonoras. 

Eu escutava amor, entrega, resiliência, compromisso, responsabilidade e uma percepção consciente de que a expressão de cada ser na sua unidade e completude só é possível a partir da interação com o todo. A capacidade do cacique de fazer seu povo ser representado através daquela fala despertou em mim uma curiosidade investigativa que me levou a fluir o resto da jornada refletindo sobre o que é liderar.

No dia seguinte, uni-me a dois jurunas, que seriam nossos condutores, e a outros dois corajosos peregrinos para o início desta ousada canoada pelo Rio Xingu. A empolgação inicial logo foi substituída por um desânimo dolorido. Passamos quase cinco horas remando no lago da barragem de Belo Monte, sentindo a densidade de navegar por vidas inundadas. O rio não corre por lá e a água tampouco acolhe. O impacto na ação humana naquele lugar é desolador.

Senti vergonha, culpa, indignação e medo do que somos capazes de fazer para impor nossos desejos e vontades ao outro.  Desde então, guardo em mim a experiência deste momento, para que possa sempre me lembrar que somos capazes de tudo e, por isso, responsáveis pelo o que escolhemos convocar em nós para justificar nosso agir no mundo.

A vida é movimento. Assim como no rio, essa cinesia se apresenta sem pedir licença e, graças à ela, a penosa barragem fica para trás. 

Somos abruptamente tocados por uma fonte inesgotável de beleza. A natureza se revela e os olhos não são capazes de captar tamanho resplendor.  Faltam-me palavras para dizer o que senti ao entrar na floresta e ser recebida de forma tão calorosa por toda aquela abundância de formas, cores e sons.

Ao fim do dia, imergimos ainda mais no mundo dos Jurunas. Como se seguiram nas noites subsequentes, fomos acampar nas praias do Xingu.

O sentido expandido de liderança

Confesso que todo aquele novo que me propus a viver trouxe à tona a minha polaridade, exigindo de mim uma super ação ressignificante e resiliente para que pudesse lidar com todo o desconforto do desconhecido que estava diante de mim.  Só assim pude abdicar do formatado, do prejulgado e preestabelecido que apequenavam e limitavam toda a diversidade autêntica que se apresentava diante de mim.  

Não reconhecer e acolher toda essa complexidade que vivia seria totalitário, impositivo e castrador. E isso seria para mim muito mais dolorido do que me permitir sair do controle e me entregar para experienciar aquele momento presente.

Durante todo o percurso, logística, estratégia para lidar arbítrios da natureza, gestão de pessoas, intenso compartilhar emocional, intelectual e espiritual foram necessários para que todo o grupo chegasse até o final da empreitada. Tais habilidades foram demandas diuturnamente das lideranças da canoada.

Brotaram, então, em minha mente uma série de questionamentos. Liderar seria algo inato? Uma habilidade especial que alguns poucos são dotados? Afinal, qual seria o significado de liderar? 

Imediatamente, recordei-me de uma frase dita pelo querido mestre Satish Kumar, em suas aulas sobre liderança na Schumacher College.  Enquanto caminhava vigorosamente no bosque ao redor do campus, disse ele, dentre outras preciosas lições, que “liderar é organizar ação”.

Sim, definitivamente era algo intrínseco ao ato de liderar. E a partir daquela experiência que vivia, esse ensinamento ficou introjetado na minha mente e na alma.

Esse era um aspecto.  Mas, atrelado a ele, havia uma dança acontecendo.  Algo do campo do sutil que conectava as pessoas e fazia com que a liderança acontecesse.  Percebi que liderar não é sobre estratégias, métodos e planos que são impostos por alguém a um determinado grupo. É para além disso.

É preciso abraçar a realidade de que a vida acontece no campo do relacional e não nas propostas e projetos. Para que a liderança emerja concretamente, há uma íntima interação entre o “líder” e os que se deixam liderar, permitindo que sonhos, intenções e desejos aconteçam no mundo das ações.

Uma teia de constante troca e celebração de novos acordos e combinados entre os envolvidos é tecida. Um compartilhar que só existe quando há disponibilidade mútua de “líder” e “liderados” para este relacionamento, permitindo que, por muitas vezes inclusive, se faça emergir uma alternância dessa liderança.

Borbulhava em mim a constatação de que é o relacional que proporciona espaço para sustentar o que se quer construir. Ouso concluir que liderança não é sobre líderes, mas sim sobre a habilidade de se explorar a fenomenologia do processo relacional que acontece toda vez que pessoas se reúnem.

A complexa teia relacional da vida.

No Xingu, vivi um longo processo de reconexão com a terra. Foram dias intensos e extenuantes, fisicamente e emocionalmente, que me proporcionaram reaprender sobre mim mesma. 

O que vivi lá me ensinou muito sobre liderança e, também, sobre o quanto essas diferenças culturais estão carregadas de dor pelos abusos e desrespeitos do passado e do presente. Percebo ainda o quanto a valorização do que é local é uma grande possibilidade de cura e regeneração para nosso desafio global de viver em harmonia conosco, o outro e a Terra. 

Diante de uma das maiores riquezas do planeta, a Amazônia, mergulhei na minha integralidade como parte daquele todo. Despi-me das minhas crenças sobre conforto e bem-estar e me coloquei disponível para o mundo do outro, onde homem e a natureza não são um fim em si mesmos, mas sim partes de um todo, sem separação, em contínuo processo participativo e colaborativo. 

Pude sentir o paradoxo da integralidade e da fragmentação, que ali nos invadiu os olhos através da majestosa generosidade da floresta e a grandiosidade mesquinha representada pela hidrelétrica de Belo Monte.  Duas realidades que coexistem dentro e fora de mim e que desde então tornaram-se conscientes, permitindo que a cada dia eu possa escolher quem quero nessa grande teia relacional da vida.

Tem alguma dúvida?