Uma olhada nas notícias diárias demonstra que a lei – em contraste com a imagem comum de razão seca e objetividade – lida com toda a gama de sentimentos humanos.
Se o sistema jurídico deve atuar como uma força de bem-estar e justiça social em vez de violência e retribuição, essa dicotomia deve ser removida.
É provável que a maioria dos brasileiros lembre com clareza do incêndio da Boate Kiss e até tenham acompanhado o processo pelos noticiários. Dez anos se passaram desde a tragédia e as feridas seguem sendo tocadas ao longo das tramitações. Dores e emoções dos familiares e sobreviventes, é claro, mas também de todas as pessoas envolvidas nos julgamentos.
Essa é uma das histórias que demonstram o fato de que sentimentos fortes estão envolvidos em todas as questões legais, sejam eles vivenciados por juízes, advogados, jurados, réus ou vítimas. Mas não são apenas eventos de grande escala e noticiáveis que envolvem isso. Mesmo uma disputa sobre pagamento de pensão ou a sucessão familiar podem causar preocupação, tristeza, frustração e raiva de todos os lados.
Apesar disso, a lei tem tradicionalmente se colocado em contraponto à emoção, como uma reserva da razão e da racionalidade. Os sentimentos têm sido caracterizados como irracionais e perigosos — coisas que precisam ser contidas ou suprimidas.
Há dois problemas com esta abordagem. Primeiro, é o fato de ser completamente irrealista, já que as emoções estão sempre presentes sob a superfície da objetividade humana — muito melhor declará-las se quisermos evitar vieses ocultos.
Depois, se o sistema de justiça se tornar uma forma de linha de montagem judicial, rígida e sem nenhuma criatividade, a serviço de quem ele estará?
O (falso) perigo das emoções
Uma análise interessante sobre o assunto foi feita por António Damásio em seu livro “O Erro de Descartes”. Nele, o neurologista demonstra que a emoção tem, de fato, um papel positivo a desempenhar no raciocínio.
Em vez de algo que precisa ser suprimido, a emoção está entrelaçada com a cognição de forma que não pode ser ignorada, então as tentativas de suprimi-la são inúteis e, em alguns casos, prejudiciais. Sem emoção, a tomada de decisão pode ser superficial, frágil e carente de um senso necessário de humanidade compartilhada.
Ao integrar essas ideias no trabalho de juízes, tribunais e na tomada de decisões legais, uma abordagem diferente do direito e da emoção está emergindo gradualmente.

Veja o caso dos tribunais de resolução de problemas nos Estados Unidos, por exemplo. São espaços especializados com juízes trabalhando em colaboração com uma equipe de apoio à comunidade.
O foco está na reabilitação, com o tribunal adotando uma abordagem holística, observando as circunstâncias mais amplas que levaram ao crime e a posição do infrator. Os “tribunais de paternidade” também seguem princípios semelhantes – neste caso, oferecendo alternativas à prisão para incentivar o emprego e o pagamento de pensão alimentícia, com foco na melhoria das relações entre pais e filhos.
Como parte desse movimento, a advocacia regenerativa incentiva os profissionais a recorrer a outras disciplinas e perspectivas para resolver os desafios que enfrentam, uma abordagem que reconhece que o litígio não é o melhor caminho e que a lei pode facilitar as relações sociais e alcançar a justiça em sua essência – em vez de simplesmente impor a ordem.
O ser humano é a tecnologia mais importante da inovação jurídica
O sistema jurídico convencional ainda rejeita a relevância e o potencial dos sentimentos das pessoas, e grande parte da aplicação cotidiana da lei em escritórios de advogados, cursos de formação, sessões de mediação e negociações entre diferentes partes, permanece intocada.
Parte do meu trabalho como advogada e também como professora é entender essas lacunas. Parto do reconhecimento de que a emoção pode melhorar o aprendizado, promover o desenvolvimento de habilidades jurídicas eficazes, aprofundar as percepções das pessoas sobre ética profissional e promover o bem-estar dos profissionais do Direito também e seus futuros.
Ao meu ver, o caminho para isso necessariamente passa pela inteligência emocional. Essa soft skill estimula os profissionais experientes e também os futuros advogados a exercerem a profissão de forma mais ética, promovendo maior respeito às pessoas e ampliando o acesso à justiça.
Defender o reconhecimento da emoção não é sugerir que ela deva suplantar as noções legais existentes de razão e racionalidade, ou que deva ser a influência predominante em todas as situações. Mas os sentimentos definitivamente devem figurar como um elemento da lei e das estruturas legais.

Combinar razão e emoção de novas maneiras pode ser transformador, tanto para a própria lei quanto para a sociedade como um todo – abrindo o sistema de justiça, reconhecendo a importância do poder e das relações e promovendo noções de bem-estar individual e social.
Isso é extremamente desafiador, afinal questiona as concepções ocidentais do lugar que emoção deveria ocupar – lugar este construído desde Platão, que coloca os sentimentos subordinados à razão.
No entanto, também pode ajudar a produzir um sistema de justiça mais integrativo, eficaz e inclusivo, no qual a lei se torne a ferramenta mais poderosa na busca por justiça social.
Leia também:
Empresas que curam: quando sucesso é sinônimo de impacto positivo
Siga a SER: