Ping-pongue da SER Consultoria com o Desembargador Werson Rêgo

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Durante a pandemia, fomos convidados a efetivamente olhar para as relações contratuais de forma mais amplificada

Como nunca antes, a pandemia nos convocou a pensar em métodos extrajudiciais para a resolução de conflitos. Em sintonia com o que penso, convidei  Werson Rêgo, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, para conversarmos sobre um novo paradigma contratual. 

Confira alguns dos tópicos que abordamos: 


Fernanda Guerra: Durante a pandemia, o próprio Judiciário nos convocou para que se olhe para métodos extrajudiciais, como a mediação, a conciliação, buscando alternativas para dar conta de toda essa volatilidade, ambiguidade e mudança que tá sendo exigida num momento tão desafiador. 

Werson Rêgo: Acredito que a internet tem uma dupla característica, tendo essa particularidade de potencializar o que você é. Então, se você é uma pessoa alegre, extrovertida, isso vai claro muito claro nas suas postagens. Se você tem uma preocupação acadêmica, como eu tenho, isso também fica refletido nas nossas postagens, como uma preocupação com a entrega de informação, de conteúdo. 

Agora, tem outro lado muito ruim, mas a gente tem que conviver com isso também, que é o lado da pessoa que não tem compromisso com nada, que é franca atiradora e que só sabe criticar e lançar maledicência. Então, há esse duplo ambiente. 

Eu prefiro que seja assim. É melhor você ter liberdade para se expor e, eventualmente, você impôr responsabilidade a quem não sabe se comportar com ética, nesse espaço que é um espaço público. 

Existe uma etiqueta que precisa ser respeitada e a etiqueta é nesse sentido, de pequena ética, de respeitar o espaço do outro. Quando pensarmos nisso para a relação contratual, vamos ver que faz todo o sentido. 

Você ter esse comportamento ético, de respeitar o espaço do outro. Então, você começar a entender que precisa se comportar com cuidado, com gentileza, com atenção…  as pessoas precisam disso: entender o espaço em que elas se encontram, respeitar o espaço do outro e entender que os dois precisam conviver naquele ambiente. Espaço esse que pode ser um ambiente de internet, familiar, entre amigos ou pode ser um ambiente contratual. Não precisa nunca se tratar o contrato como ambiente adversarial, porque não é. Quando aprendemos isso, a coisa começa a fluir com mais facilidade.

Fernanda Guerra: Cuidar dessa teia relacional que te cerca é o que dá sustentabilidade. É exatamente esse convite que eu sinto através dos contratos: uma grande oportunidade de nos expressarmos num ambiente contratual como a gente gosta ou gostaria de ser tratado. O contrato não pode ser um ambiente amistoso. Porém, quando você olha o layout do documento, observa o linguajar, percebe o oposto. 

Com os Contratos Conscientes, o que eu me proponho e coloco a discutir é justamente que ambiente é esse que estamos construindo e para quem. Nesses meus 20 anos de advocacia, percebo que sempre construí um contrato direcionado para o Judiciário. Um contrato construído para chegar na mão de um juiz, de um desembargador. É para ele que eu devia mostrar minha erudição. 

É esse lugar que eu comecei a me questionar, como é que eu vou cuidar de uma relação como profissional do Direito se eu não estou proporcionando para o meu cliente um lugar amistoso para ele navegar com essa outra parte. Hoje em dia, quando eu sento para fazer um contrato, eu sempre me pergunto a serviço de quê aquelas pessoas estão reunidas. Então, em cima disso, vou construir esse contrato, vou trazer as cláusulas legais, não com o objetivo de criar um pano de fundo de defesa para o dia em que eles não se derem mais bem, mas pensar em cláusulas contratuais que façam com que eles possam se conhecer e criar um ambiente de confiança. 

É diferente do cliente chegar solicitando um contrato,  eu voltar depois de uma semana com um documento, ele olhar para aquilo e pensar “nossa, eu não entendi nada, então deve estar ótimo”. Atualmente, coloco o cliente justamente para construir o contrato comigo. É a partir da participação dele, da percepção do que ele quer construir com esse outro, que eu vou estar construindo o contrato.

Brinco que deixo de ser advogada, eles deixam de ser clientes e a gente passa a ser co-designers daquele documento contratual. Entendendo que, claro, é um documento que pode vir a parar no Judiciário, mas que o objetivo dele não é esse. Ele vai se prestar a chegar no Judiciário se nenhum mecanismo daquele contrato conseguir fluir naquela relação. Contudo, antes, que façamos outras tentativas que não simplesmente terceirizar no primeiro problema, acarretando no que a gente tá vendo hoje, que é um Judiciário sobrecarregado. 

Werson Rêgo: Temos que começar a enxergar outros prismas. A nossa geração está aprendendo muito com a seguinte, com a geração dos nossos filhos. Como tudo, tem coisas boas e coisas ruins, mas o importante é que nós, com a nossa maturidade e responsabilidade, consigamos fazer os filtros necessários. 

Com certeza, no processo de evolução e amadurecimento deles, quando eles chegarem a uma fase mais adulta, já terão feito as podas necessárias. A nossa atual geração é uma geração litigante. É uma geração beligerante. Nós não fomos educados, desde a infância, para transigir, para conciliar, para compôr. Quando nós fomos para a faculdade de Direito, não aprendemos isso.  

Viemos com essa deformação na nossa característica humana e na nossa característica profissional, e isso vai permear o nosso dia a dia e atuação. Eu sou aquilo que eu fui preparado e formado para ser, com algumas podas e algumas melhorias.

Aprendi muito sobre Contratos Conscientes com você. Fui começar a estudar, a me preparar, a tentar entender os contratos, como funcionam, qual a finalidade, razão de ser. Hoje, já indico às pessoas e comento sobre em minhas aulas sobre contratos, trazendo uma visão que antes não tinha. Essa juventude que está aí, aperfeiçoando-se, amadurecendo e colocando a mão na massa para carregar o piano pela nossa, tem valores completamente diferentes. Eles são mais solidários, empáticos, já aprendem a transigir, a negociar, a compor. Já faz parte do processo de desenvolvimento e formação da personalidade deles esse tipo de cultura.

Nas faculdades, já ensinamos mediação, conciliação e levamos para métodos consensuais de resolução de conflitos. Começamos a buscar aí um novo ambiente. 

Contudo, não adianta eu querer mudar o mundo se não conseguir mudar a mim mesmo. As maiores transformações têm que começar no indivíduo. Então, se eu não começar comigo, se a gente não começar por nós mesmos, não vamos conseguir mudar o exterior, porque o exterior é o conjunto de individualidades.

Fernanda Guerra: Entender todo o mecanismo jurídico que nos cerca é algo essencial para que a gente mude a cultura que vivemos. Então, quando a gente pensa em sociedade, em termos macro, eu não posso esquecer que toda a nossa construção, em termos jurídicos, é uma construção baseada na revolução industrial, em Descartes, em todo o paradigma que vem da ciência e, a partir daí, você faz a construção legal.

Hoje, a pandemia nos mostra como o poder da interconectividade e a nossa necessidade de colaboração. Trata-se de vida em teia, não é fragmentada.  O Werson que está julgando no Tribunal é o mesmo Werson pai de família.  Não são duas pessoas distintas, é um sujeito integral, então, assim, não dá para a gente se ver e ver o mundo jurídico como sistemas a parte. 

Essa mudança que você trouxe começa no micro, dentro de casa, e você começa construindo, valorando a nossa relação. A vida não está nos grandes eventos, no dia em que você tomou posse como desembargador ou juiz, mas em tudo que fez antes para isso acontecer. Não está na sua festa de 25 anos de casamento, mas em toda a construção dessa trajetória a dois. 

É esse paradigma e essa visão que eu tento transpor para os contratos. Por que fazer um contrato? Por que eu faço um casamento, uma sociedade ou eu alugo meu  imóvel, isso existe um motivo para isso? A partir do momento em que eu firmo um contrato com alguém, como eu quero cuidar disso? 

Assinei aquele contrato de locação com alguém. Nunca mais vou vê-lo, a não ser quando a gente queira renovar o contrato ou rescindir. Contudo, não é bem assim. O cano estoura, o sujeito atrasa o pagamento, o vizinho reclama dele, ele é péssimo condômino, então, a gente vive uma vida ilusória e esquece de cuidar do ordinário, quando é esse ordinário que é o nosso dia a dia. A proposta, quando eu penso em Contratos Conscientes, é sobre um lugar de a gente enxergar o Jurídico como sustentador de uma cultura que só oprime. 

A nova geração não quer mais saber de escolher uma profissão porque vai ser bem sucedido ou ganhar dinheiro; quer ter propósito, quer que aquilo fale com a alma. Isso faz com que, obviamente, sustentem outros valores. Cabe a nós, que ainda estamos no comando, construir um esteio para que eles possam fluir justamente nessa teia. 

Werson Rêgo: A relação jurídica é uma relação humana. Falamos da relação jurídica, da relação econômica, mas esquecemos que são relações humanas. O Direito existe para as relações humanas, então, é preciso que a gente primeiro entenda que nós estamos nesse ambiente humano. E o ambiente humano, necessariamente, é um ambiente relacional.

Ética é aquela força que te impõe para fazer o que é certo quando não tiver ninguém olhando. É só isso. Então, você não está fazendo as coisas com medo, você está fazendo as coisas porque é certo. Na medida em que você aprende o que é o certo a fazer, aquilo começa a transitar de maneira mais fluída e natural no seu dia a dia. Não precisa ser aquela ética aristotélica, pode ser uma ética pequenininha, uma “étiqueta”. 

Quando a gente transporta isso para uma relação contratual, o que que se espera das partes é uma base ética e uma base econômica. A base ética de qualquer contrato é a boa fé. E o que é boa fé, para a gente traduzir o juridiquês? É o poder de enxergar o outro. É o dever de satisfazer as legítimas expectativas do outro. Não é o que se colocou no papel que operou com força vinculante, foi o nosso acordo. O nosso acordo nos vinculou. O papel é a materialização daquilo que nós combinamos. 

Eu acredito em você, você acredita e confia em mim. Não tenho motivos para ter reserva à você e vice-versa, e o que você espera? Que eu cumpra a aquilo a que eu me comprometi e eu espero a mesma coisa de você. E, nesse momento, o contrato está cumprindo sua função social, porque está fazendo as riquezas circularem, as relações se desenvolverem com harmonia, com ética. E por que a gente não consegue transportar isso para as nossas relações contratuais? Porque muitas vezes não fomos orientados a tanto pelos nossos advogados.

Fernanda Guerra: Voltando para a questão que você trouxe da boa fé, porque isso não acontece no ambiente contratual, justamente porque a começamos a empoderar o papel. E o documento em si não consegue costurar acordos. A regra é para ser quebrada, enquanto o acordo, a gente revisa. 

Como se constrói boa fé com duas pessoas que não se conhecem? Acredito que criamos um lugar sempre de desconfiança meio que como um espelho de nós mesmos. Não confiamos no outro porque não confiamos em nós mesmos. 

Como eu posso exigir que um documento cuide da minha relação se ele de forma nenhuma conceber que eu estou mudando o tempo todo? O contrato parte de um modelo hipotético, ele congela uma situação e coloca aquilo no papel, e não traz a menor possibilidade de as pessoas discutirem aquela relação.

A proposta do Contrato Consciente é que ele seja vivo, dinâmico. Eu coloco as pessoas para se conhecer, então, nesse momento, eu deixo de ser a advogada belicosa, que está ali para defender um cliente, e me coloco como instrumento de facilitar aquele diálogo entre aquelas pessoas para que elas possam se conhecer. Eu não faço um documento, mando para o cliente por e-mail, ele acha legal, assina e segue. Aqui, o cliente é auto implicado nesse processo, ele vai construir isso comigo. 

Werson Rêgo: As leis naturais não são derrogadas pelas leis jurídicas, essa é uma compreensão que precisamos ter. Achar que o Direito conforma o mundo está errado. O Direito não vai pôr ordem no mundo. Podemos tentar harmonizar as relações, mas, ainda assim, se não houver contribuição das partes, isso não vai acontecer. 

Quando falamos de contrato, precisamos trazer isso pra todo mundo o famoso what, how e why (do inglês, o que, como e por que). O que é o contrato e como fazer são perguntas facilmente respondidas pelo Google. Agora, o porquê de fazer esse contrato é onde reside a diferença dos Contratos Conscientes, essa ótica relacional onde é preciso ter propósito, ter sentido. 

Fernanda Guerra: Vou trazer um exemplo disso. Tenho um cliente, proprietário de um bistrô vegano, aqui no Leblon (RJ). Esse cliente, por conta da pandemia, resolveu mudar o negócio e, nessa mudança, se agregaram outros dois sócios. Então, me convidaram para fazer justamente um contrato relacional, um Contrato Consciente baseado em valor para essa nova sociedade.

Estavam todos muito empolgados. Uma já tinha o know-how de cozinhar, o outro vinha com a questão de tecnologia, e o terceiro, com o dinheiro. Quando fomos alinhar as expectativas, eles chegaram à conclusão, após quatro sessões, que não tinha a conexão necessária para serem sócios. As diferenças eram tão grandes em relação às expectativas e aos valores que era melhor que não fizessem essa sociedade. Optaram por manter a amizade. 

Encerraram a sessão chorando, comovendo-se com aquela situação. Eles viram que era muito mais interessante e próspera a manutenção da harmonia da relação de amizade. Assim, eliminamos um problema e sustentamos laços que têm que ser solidificados.

Werson Rêgo: Por que os relacionamentos falham? Tem vários motivos que eles podem fadar. E as pessoas dizem: “poxa, mas vocês combinavam tanto”. Combinar não é garantia de que a coisa vai dar certo. 

É preciso ter um propósito comum. Não é o casamento ou um papel que mantém alguém unido. É uma relação entre duas pessoas, que poderão não ter nada a ver uma com a outra. Diferente dos três amigos que tinham tudo a ver e estavam fadados ao insucesso, você pode ver dois parceiros contratuais que não tenham nada a ver um com o outro, mas que vão se complementar.

Fernanda Guerra: A diferença é soma, porque nessa diferença, você multiplica possibilidades. O problema é querer moldar o outro, classificar a diferença como algo bom ou ruim. 

A proposta de quando estamos construindo um contrato é trazer clareza para isso, transparência a tal ponto que as pessoas cheguem e digam: “não vai dar, porque eu não dou conta, não vou conseguir fazer essa ginástica para que isso dê certo. O propósito é lindo, eu adoro, mas para mim, está no meu limite”. Então, é respeitar o limite do outro, entender que, realmente a harmonia social é sobre isso. 

Os negócios não quebram por uma questão financeira, quebram por uma questão relacional. As pessoas perdem o emprego por questão relacional. Por que não usar um instrumento contratual para cuidar das relações efetivamente, de forma ampla e real, trazendo a verdade?

Werson Rêgo: Estamos vivendo em um período de extrema excepcionalidade em que as relações contratuais, as relações jurídicas, foram impactadas na sua integralidade e não apenas no sujeito A com o sujeito com B, mas a relação como um todo. 

O pior nessa hora é as pessoas transferirem a solução pro lado externo. Aí é que tá o maior problema das nossas relações hoje, achar que a solução está no outro. Quando não conseguem conversar,  levam o problema às barras da Justiça, porque querem que o Judiciário puna.

O Judiciário não tem esse papel, não tem essa missão. Precisamos, especialmente nesse momento, de mais maturidade e responsabilidade, e menos delegação.

Fernanda Guerra: Quando cuido das relações em um contrato, mostro que eu, como advogada, não posso fazer isso sozinha. As partes precisam assumir as suas responsabilidades, colocar em prática aquela cláusula que definiram juntos. O lugar do Judiciário é discutir questões de alta indagação jurídica, que refletem em toda a sociedade, e não aquele lugar ordinário.

Para conferir a live na íntegra, clique aqui.

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