Justiça: por uma experiência autêntica, plural e coletiva

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O Judiciário é apenas uma possibilidade, e não a única forma de ter acesso à justiça

Já pensou em como seria se vivêssemos um um mundo em que só houvesse uma única narrativa? Além de parecer irreal, essa perspectiva também me provoca uma sensação de restrição alienante. Assim também ocorre com a justiça. Em uma sociedade plural e diversa, não é mais possível encarar a justiça como apenas como uma manifestação do sistema no qual estamos inseridos.

Percebo que essa sensação restritiva vem da minha falta de conexão com a concepção de mundo que vivemos. Um mundo sustentado por um modelo de desenvolvimento desastroso do ponto de vista ecológico e relacional, que é legitimado por um arcabouço jurídico hierarquicamente vertical e anacrônico. 

O que é o conceito de justiça?

Existem diversos conceitos de justiça, comumente relacionados à organização do Estado e do sistema político. Apesar de terem aplicações no Direito, essas teorias elaboradas pela filosofia costumam tratar sobre como a sociedade deve ser organizada sem que prejudique indivíduos ou  sobre a reparação de injustiças sociais.

No Direito, a discussão sobre a justiça ganha outros aspectos. O justo passa a ser a aplicação da lei ao caso concreto. Quando há conflitos, o Judiciário é o responsável por “dizer o Direito”, com o objetivo de resguardar os interesses e manter a ordem.

No Brasil, o juspositivismo é a corrente dominante. Nela, vê-se a justiça na estrita aplicação da lei. Isso significa que, se uma determinada lei define que tal atitude é considerada errada, assim o será. 

Esse sistema adotado no Direito brasileiro tem como base correntes do pensamento do positivismo jurídico que datam do início do século XIX. Com o passar dos anos, essa visão passou a encontrar dificuldades para regular as novas relações. Precisou, então, adequar-se para esse novo momento, mas ainda assim carrega consigo fundamentos importantes que foram definidos há séculos, como a aplicação praticamente mecânica de leis que não são capazes de englobar as diferenças. 

Como repensar a vivência da justiça

Ao conhecer esse padrão clássico, desenhado em um momento histórico diferente do que vivemos, fica claro que simplesmente paralisar e aceitar essa condição não ressoa como uma possibilidade para alguém que, assim como eu, reconhece-se em constante e contínua transformação. Isso é ainda mais latente quando nos colocamos como agentes de mudança, a fim de construir a realidade que queremos viver. 

Para Platão, viver em justiça é ter cada indivíduo ocupando o seu lugar no mundo e justo é aquele que age de acordo com aquilo que é próprio de sua natureza. Parafraseando-o, percebo que vivenciar a justiça passa por acolher e respeitar a diversidade e unicidade que pulsam em cada um de nós.

Munida dessa concepção platônica, coloco-me a pensar em justiça de forma descolonizada e sistêmica. Uma justiça autêntica, plural e coletiva, onde abrimos mão do externo e dual binômio “certo e errado” e podemos adotar nossa própria vivência como balizador e catalisador do que é justo.

Justiça, paz e harmonia

Quando penso em justiça, outros dois valores imediatamente saltam à minha mente: harmonia e paz. Sinto uma cinesia incessante entre essa tríade – justiça, paz e harmonia. Um movimento que se entremeia e retroalimenta a partir de uma experiência individual, inter-relacional e coletiva.

Um lugar onde “o espaço da paz se comunica na harmonia e age através da justiça”, como sabiamente disse minha amiga e mentora Simrat, em uma de nossas conversas sobre Maya (termo sânscrito que se refere ao conceito da ilusão a partir da qual se constituiria a natureza do universo). A partir dessa ideia, reverbera em mim uma justiça viva, sustentadora e intrinsecamente conectada com a paz e harmonia.

Sinto que para criar um espaço que comporte essa possibilidade é preciso um olhar integrativo. Aqui, a justiça, muito mais que um sistema, deve ser um descortinar de possibilidades construídas de acordo com os sujeitos e as relações envolvidos em cada situação. Nesse caminho, o Judiciário torna-se apenas uma possibilidade e não a única forma de se experienciar a justiça.

Este talvez seja um caminho simples, ainda que não necessariamente fácil. Uma jornada de transformação de um modelo burocrático para um sistema de propósito que reverencia a diversidade singular da vida. Viver essa mudança de paradigma sobre a justiça contempla integrar o natural, o social e o espiritual. E aqui não falo de religião, mas sim de amor e compaixão consigo, com o outro, com o todo.

Transcender a única concepção de justiça que hoje dispomos exige que transicionemos do ego para o eco, como ensina Satish Kumar:

“O ego complica, o eco simplifica. Eco significa “casa”, lugar onde as relações são nutridas. Quando ficamos travados no ego, nos desconectamos dos outros” 

Satish Kumar, Simplicidade Elegante, 2020, 1 edição, pág. 81

Percebo, então, que viver uma experiência de justiça que nos reconheça como sujeitos capazes de autogerir nossos conflitos através de nossas próprias perspectivas requer engajamento, proatividade e protagonismo em cada ato de nossas vidas. A mudança só está começando. 

Tem alguma dúvida?